Escritora Ana P. Azevedo
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Começa com a Macarronada
Adoro macarronada porque me lembra os domingos da minha infância, quando saíamos logo pela manhã da Vila Matilde para a Lapa. Atravessar o minhocão tranquilamente era um passeio. Minha mãe trabalhava no passe de um Centro Espírita e eu ia à Evangelização Infantil. Para não ter problema com meu pai, que sempre foi católico, no sábado ela já temperava a carne, assava o pimentão para salada, aprontava o molho e a sobremesa. Nessa época ele trabalhava na TV Cultura como operador de áudio e toda a semana gravava a Missa de Aparecida. Viajava no sábado e voltava no domingo na hora do almoço. Minha avó também almoçava conosco. Dois dos meus tios sempre passavam para vê-la por volta das onze horas. Conversavam, riam. Mas não ficavam para almoçar.

Falando em avó, sua macarronada era imbatível. Ela adorava cozinhar e era o que fazia melhor.

Quando já morava na Vila Matilde muitas vezes minha mãe a viu subindo a ladeira de sua casa para comprar uma simples folha de louro para temperar o molho do macarrão. Minha mãe sempre dizia:

- Faz sem louro mesmo...

Recebia como resposta:

- Por isso que a comida de vocês fica uma porcaria...

Eu não vivi essa época, mas antigamente os natais eram na casa dela, que não deixava ninguém chegar perto das panelas, só lavar a louça. Fazia galinha caipira recheada, que ela mesma havia matado e depenado, canja com o caldo da galinha cozida, a famosa macarronada, um doce espanhol chamado crusto... Todos os filhos iam lá com suas famílias. Detalhe: ela teve seis filhos, então dá para imaginar o que se formava...

Durante a sua vida a principal preocupação era como alimentar oito pessoas com o salário de vassoureiro do meu avô. E eles nunca passaram fome. Quando os filhos eram pequenos ela fazia cigarro de palha para vender para a fábrica. Teve uma época que trabalhou fora e meu tio mais velho olhava os irmãos. Depois ele, com apenas onze anos, começou a trabalhar fora e ela de casa. Todos os outros filhos foram trabalhar aos doze anos. As roupas era minha vó que costurava à mão. Ela aprendeu a costurar sozinha. Como não sabia fazer molde desmanchava as roupas velhas em pedaços, para que servissem de molde para as novas.

A forma como aprendeu a ler também foi curiosa. Precisava fazer um milheiro de cigarros de palha por dia. Esse era seu trabalho desde os seis anos de idade. Caso não fizesse o milheiro, sua mãe não a deixava ir à escola.  Como toda a criança queria ter tempo para brincar, e por isso acabou abandonando os estudos após seis meses. Mas pegava o jornal do banheiro para ler, ia treinando, juntando as palavras, até conseguir.

Quando teve seus filhos insistiu para que todos fossem à escola e para que os homens tivessem uma profissão. Dois dos meus tios se tornaram barbeiros e dois conseguiram emprego em uma metalúrgica, fizeram Senai, e tornaram-se ferramenteiros. Quanto as duas mulheres cursaram apenas o primário. Na cabeça dela a obrigação de sustentar a casa era do homem. A mulher deveria se preocupar apenas com o casamento. Minha mãe diz que foi crucificada pela família porque se casou com trinta e cinco anos.

Ela conheceu meu pai aos trinta e três anos no ônibus a caminho do trabalho. Logo engataram um namoro. Dois anos depois, resolveram se casar. Mas minha mãe entregava todo o salário para minha vó, meu pai era viúvo, tinha dois filhos para sustentar e morava no fundo da casa da mãe. Foi ideia dele começar a vender bijuteria e depois roupa. Ela fazia as compras e punha o preço, vendia no seu trabalho e ele no trabalho dele. Conseguiram comprar o enxoval, os móveis, todos os utensílios para a casa, vestido de noiva, pagar igreja e fazer a festa na casa de meus avós maternos.

Ela abandonou o emprego. Engraçado que o chefe dela foi pedir para meu pai a deixar trabalhar.  Depois falou para minha mãe ensinar a nova funcionária. O pagamento por isso foi uma camisa para meu pai. O único benefício que ela tirou daquele emprego foi que o antigo chefe a deixava entrar na fábrica para vender aos funcionários.

A princípio meus pais moraram de aluguel e depois que minha avó por parte de pai morreu compraram a primeira casa com as economias que tinham e o dinheiro da herança.  Eles venderam roupa até meus doze anos. Foi na época em que assaltaram minha casa e roubaram toda a roupa que nem haviam terminado de pagar.

Como não teve a chance de estudar, minha mãe sempre me incentivou.  Quando meus pais foram comigo fazer a matrícula na faculdade ele estava de peito estufado e nariz empinado e ela era só sorrisos. Parecia que eu estava sendo nomeada presidente do Brasil. Na formatura ela chorou. Ele sempre falava do meu emprego como se eu fosse a dona da empresa.
Herdei da minha mãe o amor pelos livros e o jeito curioso. Meu pai já estava aposentado, desempregado e com dívidas quando fui para a faculdade. Mas os dois chegaram a vender bolo de porta em porta para que eu me formasse, até ele conseguir um emprego de porteiro. Nessa época eu fazia estágios que pagavam pouco e só conseguia pagar a metade do valor do curso.

Muito tempo se passou e muita coisa aconteceu. Não tenho mais meus avós e meu pai. Nem meus tios, que faleceram muito cedo. Mas as lembranças ficaram. E me espantei com quantas surgiram a partir de uma simples macarronada....
AninhaP
Enviado por AninhaP em 18/09/2023
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